quinta-feira, 14 de junho de 2012

SABEDORIA DO EVANGELHO NICODEMOS III

Olá,

 Continuação

4. Perguntou-lhe Nicodemos:
  "Como pode um homem nascer sendo velho? Pode porventura entrar pela segunda vez no ventre de sua mãe e nascer"? 5. Respondeu Jesus: "Em verdade, em verdade te digo, que se alguém não nascer de água e de espírito não pode entrar no Reino de Deus;


6. o que nasceu da carne é carne, o que nasceu do espirito é espírito. 7. Não te maravilhes de eu te dizer: é-vos necessário nascer de novo (do alto): 8. o espírito age onde quer, e ouves sua voz, mas não sabes donde vem nem para onde vai: assim é todo aquele que nasceu do espírito". 9. "Como pode ser isto"? , perguntou-lhe Nicodemos. 10. Respondeu-lhe Jesus: "Tu és o mestre de Israel e não entendes estas coisas? 11. Em verdade, em verdade te digo, que falamos o que sabemos e testificamos o que vimos, e não recebeis nosso testemunho? 12. Se vos falei de coisas terrenas e não me credes, como crereis se vos falar de coisas celestiais? 13. Ninguém subiu ao céu senão aquele que desceu do céu, a saber, o Filho do Homem 14. Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado, 15. para que todo aquele que nele crê, tenha a vida futura". Um dos episódios mais instrutivos, em qualquer plano que se consiga compreendê-lo: no literal, no alegórico, no simbólico ou no espiritual. Vamos inicialmente fazer os comentários exegéticos, passando depois aos hermenêuticos. Passa-se o fato com um fariseu de nome grego, Nicodemos ("vencedor do povo"). Seu nome aparece mais duas vezes apenas, sempre em João (7-5 e 19:39).

Era Doutor da Lei e chefe dos judeus, o que indica pertencer ao Sinédrio. Procura Jesus à noite, hora mais propícia para uma conversa particular, acrescendo a circunstância da prudência de não ser visto. Nicodemos dá a Jesus o título de Rabbi, tratando-o como igual. e explica as razões por que o considera também Doutor da Lei: as demonstrações de obras e palavras, Jesus fala em nascer "de novo" ou "do alto". A palavra grega ανουεν pode ter os dois sentidos. João o emprega geralmente no segundo sentido (em 3:31, em 19:11 e em 19:23). Os ,’Pais" da igreja grega (Orígenes, João Crisóstomo, Cirilo de Alexandria, etc.) e alguns modernos (Calmes, Lagrange, Loisy, Bernard, Joüon, Pirot, Tillmann e o nosso José de Oiticica) preferem "do alto". Os "Pais" da igreja latina (Agostinho, Jerônimo, Ambrósio, etc.) e outros modernos (d’Alâs, Durand, Knabenbauer, Plummer, Zahn, etc.) opinam por ’de novo”. Um e outro sentido cabem perfeitamente no contexto.

Jesus inicia a conversa afirmando que ninguém pode VER ( ιδειν ) no sentido de conhecer, ver com a Mente, identificar-se, e portanto viver) o Reino dos céus (mais abaixo é usado "Reino de Deus" como sinônimo perfeito) se não nascer de novo, ou do alto. Nicodemos indaga “como pode nascer pela segunda vez um homem velho se poderá voltar para o ventre materno". Esta pergunta revela que o mestre de Israel entendeu "de novo" sem a menor dúvida.


O Rabbi não retira o que disse: ao contrário, confirma-o, especificando que o nascimento deverá ser "de água e de espírito" (em grego sem artigo); e dizendo mais: "que o que é carne nasce da carne e o que é espírito provém do espírito" (em grego com artigo). E repete: e necessário nascer de novo (ou do alto). Depois acrescenta: "o espírito age onde quer".
 As traduções vulgares trazem “o vento sopra onde quer". Ora, a palavra πνευµα (pneuma) é repetida no original cinco vezes nos quatro versículos (5, 6, 7 e 8). Por que traduzir quatro vezes por "espírito" e uma vez por “vento”? Estranho ... Mas há razões para isso. Veremos. Jesus muda de tom, torna-se mais solene, eleva os conceitos e penetra assuntos mais profundos. Admira- se que Nicodemos não o entenda. Salienta que entre os dois há uma diferença: Nicodemos é "o doutor de Israel", enquanto ele, Jesus, não havia feito os cursos oficiais (daí aparecer em grego o artigo diante da palavra "doutor").

Salienta, então, que até aqui falou de coisas terrenas, e não foi entendido. Que sucederá se falar das celestiais (espirituais) ? Depois cita a serpente de bronze, que foi elevada por Moisés (Núm.21:4-9), dizendo que o mesmo deverá acontecer ao Filho do Homem. No livro da Sabedoria de Salomão (16:6-7) essa serpente é citada como "símbolo de salvação". Passemos, agora, à hermenêutica.

1.ª Interpretação: LITERAL

 É a adotada pela igreja Católico-Romana. Jesus diz a Nicodemos que a criatura só pode obter o Reino de Deus (salvar-se) se renascer pela água (que é mesmo a água física do batismo) e pelo espírito (que é a infusão do Espírito Santo). Daí ser traduzido o versículo 8 por "o vento sopra onde quer", como um simples exemplo da liberdade do Espírito. O batismo é um rito de iniciação que se tornou um "sacramento".

 A palavra latina sacramentum é a tradução do grego , e corresponde aos mistérios gregos que se aplicavam aos catecúmenos (profanos que haviam recebido a instrução oral e estavam prontos para ser "iniciados" nos mistérios). Nesse sentido era usada a palavra sacramento. No século 4.º, Ambrósio introduziu no latim a palavra grega mysterium, com o sentido de "coisa oculta", segredo não revelável a estranhos. O sacramento do batismo é a junção da água e das palavras que dão o Espí- rito, e se define: "sinal sensível que exprime e produz a graça santificante, permanentemente instituído por Jesus Cristo" (Tanquerey, Theologia Dogmatica, vol. III, n. 248). E Agostinho (Tratado 80, in Johanne n.3) confirma: “No batismo há palavra e água.. Tira a palavra, que fica? água pura. Se a palavra é unida ao elemento, temos o sacramento.

Que força teria a água de lavar o coração, se não fossem as palavras"? (Patrol. Lat., vol. 35, col. 1810). Essa é a única interpretação lícita, segundo o Concílio de Trento (sessão 7, cânon 2): "Si quis dixerit aquam veram et naturalem non esse de necessitate baptismi, atque ideo verba illa Domini nostri Jesu Christi: “nisi quis renatus fuerit ex aqua et Spiritu Sancto" ad metaphoram aliquam detorserit, anathema sit". "Se alguém disser que não há necessidade de água verdadeira e natural para o batismo, e igualmente que devem ser interpretadas como metáfora as palavras de nosso Senhor Jesus Cristo: "se alguém não renascer da água e do Espírito Santo", seja anátema". Há, pois, uma interpretação fixada como dogma.

 2.ª Interpretação: ALEGÓRICA

 Foi justamente a condenada pelo Concílio de Trento, cujo artigo se dirigia contra Calvino e Grotius. Essa interpretação ainda é seguida pela maioria dos evangélicos (protestantes). A explicação da "água" corresponde ao rito do batismo. Mas o "espírito" tem novo significado: é o renascimento moral, a vida nova ou o novo teor de vida no caminho de Cristo. O sentido do renascimento espiritual, com a morte do "homem velho" e o nascimento do "homem novo" é muitas vezes ensinado nas Escrituras, desde o Antigo Testamento: "Lançai de vós todas as vossas transgressões, com que errastes, e fazei-vos um coração novo e um espírito novo" (Ez.18:31); "Também vos darei um coração novo e dentro de vós porei um espírito novo" (Ez.36:26); "Se alguém está em Cristo, é uma nova criação: passou o que era velho, eis que se fez novo" (2 Cor.5:17); "Não mintais uns aos outros, tendo-vos despido do homem velho com seus feitos e tendo-vos revestido do homem novo" (Col.3:9); e ainda 2 Cor.2:11-13 ou Ef. 4:20-24 e Rom.6:3-11. A tradução adotada no versículo 8 é também "vento", defendendo-se a tradução com a frase do Eclesiastes (11:5): "Tu não sabes o caminho do vento". Entretanto, aí a palavra usada não é πνευµα , mas ανεµος .

Quanto ao verbo pnei, se é usado com sentido de "soprar" com referência ao vento, também pode significar "agir, exteriorizar-se, manifestar-se" em relação ao espírito. O latim traduz πνευµα por "spiritus" e πνει por spirare, dentro do sentido grego. Mas também em português usamos o mesmo radical, quer se trate do espírito (inspiração) quer se trate do vento (respiração), que se divide em inspira ção e expiração; e quando o espírito se retira, dizemos que a pessoa "expirou".

 3.ª Interpretação: FISIO-REALISTA

 Aceita pelos espiritistas, como ensino da realidade fisiológica do que ocorre com as criaturas. A tradu- ção de " ανουεν " é "de novo", tal como a entendeu Nicodemos, que pergunta como pode "o homem, depois de velho, entrar pela segunda vez ( δευτερον ) no ventre materno". A essa indagação, longe de protestar que não era isso o que queria dizer, Jesus insiste e confirma suas palavras: "é o que te disse: indispensável se torna que o homem nasça de água (isto é, materialmente, com o corpo denso, dado que o nascimento físico é feito através da bolsa d ’água do liquido amniótico) e de espírito (ou sej a, que adquira nova personalidade no mundo terreno, em cada nova existência, a fim de progredir).


Se Nicodemos entendeu à letra as palavras ãe Jesus, o Mestre as confirma à letra e reforça seu ensino. Com efeito, o espírito, ao reentrar na vida física, pode ser considerado novo espírito que reinicia suas experiências esquecido de todo o passado. Em grego não há artigo diante das palavras "água" e "espírito". Não é portanto nascer da água do batismo, nem do espírito, mas de água (por meio da água) e de espírito (pela reencarnação do espírito). Daí a explicação que se segue: "o que nasce da carne (com artigo em grego) é carne”, isto é, é o corpo físico, com toda a hereditariedade física herdada do corpo dos pais; e o que nasce do espírito é espírito" ou seja, o espírito que reencarna provém do espírito da última encarnação, com toda a hereditariedade pessoal que traz do passado".

E Jesus prossegue: "por isso não te admires de eu te dizer: é-vos necessário nascer de novo". Observe-se a diferença de tratamento: "dizer-TE" no singular, e "é-VOS" no plural, porque o renascimento é para todos, não apenas para Nicodemos. E mais: "o espírito sopra (isto é, age, reencarna, se manifesta) onde quer, e não sabes donde veio (ou seja, sua última encarna- ção), nem para onde vai (qual será a próxima). As palavras de Jesus foram de molde a embaraçar Nicodemos, que indaga: "como pode ser isso"? E Jesus: "Tu que (entre nós dois) és o Mestre de Israel, te perturbas com estas coisas terrenas? Que te não acontecerá, então, se te falar das coisas celestiais (espirituais)"? 

Logicamente Jesus não podia esperar que Nicodemos entendesse as outras interpretações mais profundas desse ensinamento (como dificilmente poderia ter querido ensinar o rito do batismo, que não havia ainda sido instituído nem ordenado por ele, a essa época, quando só havia o "batismo" de João). Depois exemplifica: "como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim o Filho do Homem será erguido da Terra ". Paulo interpreta assim esse ensinamento de Jesus: "Mas quando apareceu a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor para com os homens, não por obras de justiça que tivéssemos feito, mas segundo sua misericórdia nos salvou pelo lavatório da reencarnação, e pelo renascimento de um espírito santo" (Tit.3:4-5). As palavras utilizadas são bastante claras e insofismáveis: lavatório (lavar com água; λουτρον da reencarnação: παλιγγενεσια que é o termo técnico da reencarnação entre os gregos; pelo renascimento (anaxinóseos) isto é, um novo nascimento). Paulo, pois, diz que Deus nos salvou não porque o tivéssemos merecido, mas por Sua misericórdia, servindo-se da palingenésia (isto é, da reencarnação) a qual é um "lavatório" (de água) e um "renascimento" do espírito. Que o renascimento é feito através da água, já o diz o Genesis (cfr.1:1-2; 1:6-7 e 2:4-7).

4.ª Interpretação: SIMBÓLICA

 Para compreendê-la, estudemos algumas palavras: NICODEMOS - significa "vencedor" do povo” e exprime alguém que já venceu a inércia da massa popular por seus conhecimentos das Escrituras, já se destacou do "vulgo profano” superando sua natureza inferior.

DE NOITE - talvez signifique que Nicodemos procurou o Mestre em corpo astral (ou mental) durante o sono físico. Nessa condição ser-Ihe-ia possível manter conversações mais íntimas. E João poderia ter assistido a ela, pois algumas cenas dos Evangelhos foram assistidas nessa condição (por exemplo, a "transfiguração": “Pedro e seus companheiros (Tiago e João) estavam oprimidos de sono, mas conservavam- se acordados", Luc.9:32). Nesta interpretação, descobrimos um sentido diferente do diálogo literal entre os dois, o Rabbi e o Doutor da Lei, o Mestre Espiritual e o Mestre Intelectual. Antes de qualquer pergunta, Jesus dá a frase chave do novo ensinamento que vai ministrar: "é necessário nascer de novo para ver o Reino dos céus" - Nicodemos entende que Jesus lhe fala da reencarnação, fato já conhecido por ele, pois, sendo fariseu, aceitava normalmente a reencarnação, e não podia de modo algum estranhar o fato nem ignorar sua realidade. Para confirmar esta assertiva, leia-se apenas esse trecho de Flávio Josefo: "Ensinam os fariseus que as almas são imortais e que as almas dos justos passam, depois desta vida, a OUTROS CORPOS" ... (Bell.Jud.2, 5, 11).

Como, pois, Nicodemos podia ignorar esta doutrina, a ponto de admirar-se tanto e fazer uma objeção pueril? Compreendamos sua frase, quando pergunta a Jesus: "Como poderá (bastar) um homem renascer depois de velho? Acaso poderá (bastar) que ele entre pela segunda vez no ventre materno, para (só com isso) ver o reino dos céus"? Jesus então reafirma sua tese, mas ampliando-a, elevando-a de nível tornando-a universal: Não é do nascimento físico na matéria que ele fala. Não é do microcosmo: é do macrocosmo, de que falara em Mateus (19:28): "Em verdade vos digo que vós, que me seguistes, quando na reencarnação (palingenesia) o Filho do Homem se assentar no trono de sua glória, sentar-vos-eis também em doze tronos, para julgardes as doze tribos de Israel". Trata-se, aqui, da reencarnação ou renascimento do planeta.

 Explica então: o que nasce da carne é carne, é matéria corruptível, mas a que nasce do "espírito" é o Espírito eterno, que não necessitará mais da carne para progredir. Só nasce na carne o que está sujeito às leis do Carma (individual, grupal, coletivo ou planetário): esse ainda é carne, ainda terá que nascer da água, porque está preso à baixa densidade. Mas o que nasce do espírito se liberta, ascende a outros planos. O ensinamento foi desenvolvido por Paulo na Epístola 1 aos Coríntios, capítulo 15.

"Sabedoria do Evangelho"   Carlos Torres Pastorino

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